Por  Dom Marc Aillet,

Bispo de Bayonne, Lescar e Oloron, França.

 

 

A hipermediatização de uma palavra pronunciada pelo Papa Francisco sobre o reconhecimento legal de uma “convivencia civil” - fórmula espanhola que deveria ser traduzida mais por “coabitação civil” do que por “união civil” - para pessoas do mesmo sexo, tem causado muitos problemas entre muitos fiéis católicos, padres e leigos. Questionado nos últimos dias sobre o conteúdo desta declaração, parece-me oportuno, como bispo, fornecer alguns esclarecimentos.

 

Como filho da Igreja e membro do Colégio dos Bispos, colocado sob a autoridade do Papa, nem é preciso dizer que renovo aqui a minha afetiva e efetiva comunhão com o Sucessor de Pedro, segundo o juramento de fidelidade que fiz à Sé Apostólica. pronunciado, há doze anos, quando recebi o ofício de episcopado: "Com fé inabalável, creio tudo o que está contido ou transmitido na palavra de Deus e em tudo o que é proposto pela Igreja a ser crido como divinamente revelado, seja por juízo solene, seja pelo magistério ordinário e universal. Também abraço firmemente e considero verdadeiro tudo o que diz respeito à doutrina da fé ou da moral e é proposto de modo definitivo por essa mesma Igreja. Dou minha adesão ainda, com o respeito religioso da vontade e do intelecto, aos ensinamentos que o Romano Pontífice ou o Colégio Episcopal propõem quando exercem o Magistério autêntico, ainda que não pretendam proclamá-los por uma sentença definitiva” (Código de Direito Canônico c. 833).

 

Compreender-se-á aqui que existem vários graus de autoridade no ensino da Igreja, que resultam em diferentes formas de adesão por parte dos fiéis. Devo aderir na obediência da fé a todo ensinamento em matéria de fé e moral formulado pelo Romano Pontífice de maneira solene, ex cathedra, isto é, quando age explicitamente como pastor e doutor supremo de todos os fiéis: diz-se que então goza da infalibilidade. Esta mesma infalibilidade reside no corpo dos bispos quando exerce o seu magistério supremo em união com o Sucessor de Pedro. Os bispos ainda gozam desta mesma infalibilidade, “quando, mesmo dispersos pelo mundo, mas mantendo entre si e com o sucessor de Pedro o vínculo de comunhão, concordam em ensinar autenticamente que uma doutrina sobre a fé e a moral se impõe de maneira absoluta” (Lumen Gentium n. 25): é o que se denomina Magistério ordinário e universal. As outras doutrinas enunciadas pelo Papa e pelo colégio episcopal, sem terem o caráter definitivo, desde que pretendam exercer o seu magistério autêntico, exigem o respeito religioso dos fiéis.

 

NO PRESENTE ASSUNTO, DA ENTREVISTA DO PAPA, NÃO SE TRATA DE UM EXERCÍCIO DO MAGISTÉRIO AUTÊNTICO DO ROMANO PONTÍFICE:

 

Em primeiro lugar, convém precisar que foi no contexto de um documentário, por acaso de uma entrevista, que o Papa Francisco fez esta declaração, que agora é veiculada por todos os meios de comunicação. No entanto, parece ser uma montagem que concentra várias passagens separadas da entrevista em uma única frase. E, se o Papa pôde efetivamente pronunciar as palavras acima, ele nunca legitimou por isso o ‘casamento homossexual’, nem deu um estatuto às famílias homoparentais; no máximo ele pede aos pais de não rejeitar um filho homossexual que tem sempre necessidade da sua família.

 

Porque esta afirmação parece levar em conta a evolução dos costumes e corresponder a uma demanda da sociedade ocidental, os meios de comunicação, ignorando os graus de autoridade das intervenções pontifícias, lembrados no juramento citado acima, acreditam poder nelas discernir uma revolução no ensino do Magistério. No entanto, tal palavra obviamente não tem carácter magisterial, nem na forma - não exerce aí o seu Magistério autêntico - nem na substância - e com razão, visto que está em contradição com o magistério ordinário e universal. O Papa Francisco, aliás, nunca pretendeu impor ao consentimento dos fiéis observações circunstanciais, nem dar-lhes o peso da sua autoridade de Sucessor de Pedro, a quem Cristo confiou precisamente a missão de confirmar os seus irmãos em a fé.

 

Embora permanecendo fiel à Sé Apostólica e preservando a priori uma atitude de benevolência filial em relação ao ensinamento do Papa, e uma vez que o Magistério ordinário e universal da Igreja não está formalmente comprometido, é, portanto, legítimo expressar respeitosamente o desacordo, na medida em que se pode atribuir à expressão "convivencia civil" o significado de reconhecimento de atos homossexuais.

 

RIGOR MORAL E MISERICÓRDIA

Sem dúvida, o Papa quis expressar aqui a atitude do Pastor que acolhe todas as pessoas como amadas por Deus, quaisquer que sejam a sua história e comportamento. Como uma Mãe, a Igreja exprime a sua preocupação pastoral por todos e recusa julgar as pessoas, proibindo-se de reduzir um homem ou uma mulher a seus atos. Por isso, fiel ao ensinamento do Pai transmitido por Cristo e pelo Magistério da Igreja, em matéria de fé e de moral - «quem vos escuta, me escuta» (Lc 10,16), disse Jesus ao seu apóstolos - ela nunca pode chamar de bem o que é mal. Ela recebeu a missão de recordar as grandes orientações da Lei, inscrita na natureza do homem, pela criação e pela graça, não para julgar e condenar as pessoas, mas para lhes indicar um caminho de crescimento para uma Felicidade que consiste em conformar gradualmente sua vida ao propósito de Deus, conforme ele nos revelou.

 

Como escreveu o Papa São Gregório Magno (+ 604), na sua Regra Pastoral para os Bispos: “Será necessário, portanto, fazer com que a ternura se manifeste aos seus, no pastor, uma mãe e o rigor moral, um pai; é necessário, com todo o tato possível, providenciar para que a severidade não seja rígida, nem débil a ternura. Como dissemos na Moral, o rigor da regra (disciplina) e a misericórdia perdem muito se forem observados um sem o outro (...) O Bom Samaritano (cf. Lc 10,33s) aplica às feridas o ardume do vinho e o alívio do óleo”(II, 6).

 

O QUE NOS ENSINA O MAGISTÉRIO ORDINÁRIO E UNIVERSAL DA IGREJA:

 

O Catecismo da Igreja Católica (1992)

 

Por isso, quando o Sucessor de Pedro confere ao seu ensinamento o carácter de magistério autêntico, não pode contradizer o Magistério ordinário e universal da Igreja, constantemente recordado pelos seus predecessores e tal como se expressa hoje no Catecismo da Igreja Católica. Ora, no que diz respeito à homossexualidade, pode-se ali se ler: “A homossexualidade designa as relações entre homens ou mulheres, que experimentam uma atracção sexual exclusiva ou predominante para pessoas do mesmo sexo. Tem-se revestido de formas muito variadas, através dos séculos e das culturas. A sua génese psíquica continua em grande parte por explicar. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves (103) a Tradição sempre declarou que ‘os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados’ (Congregação da Doutrina da Fé, Decl. Persona humana, 8: AAS 68 (1976) 95). São contrários à lei natural, fecham o ato sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afetiva sexual, não podem, em caso algum, ser aprovados” (n. 2357).

 

Por isso, o Catecismo continua se abstendo de julgar as pessoas e convidando, pelo contrário, a recebê-las com respeito e benevolência: “Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas. Esta propensão, objetivamente desordenada, constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição” (n. 2358).

 

É nesse sentido que o Papa Francisco se exprimiu no avião que o trouxe de volta do Rio de Janeiro, em julho de 2013: “Se uma pessoa é gay e busca o Senhor, demonstra boa vontade, quem sou Eu para julgá-la? O catecismo da Igreja Católica explica isso de uma maneira muito bonita”.

 

A identidade de um homem ou de uma mulher não resulta da sua orientação sexual, mas da sua dignidade de "imagem de Deus", e neste sentido sempre amada por Deus e extremamente respeitável. Se a Igreja não julga as pessoas - “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados ”(Lc 6,37) - não obstante, julga a qualidade moral das ações, sem jamais encerrar a pessoa em suas ações, confiante na capacidade de progresso de toda pessoa humana, em virtude da sua liberdade fundamental que nunca lhe pode ser negada, sem reduzi-la completamente às tendências que realmente não escolheu.

 

NOTA DA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ (2003):

 

Numa nota da Congregação para a Doutrina da Fé, datada de 3 de junho de 2003, assinada pelo Cardeal Joseph Ratzinger e aprovada pelo Papa São João Paulo II, podemos ler como conclusão um argumento bastante detalhado do ponto de vista bíblico, teológico, antropológico e jurídico:

“A Igreja ensina que o respeito para com as pessoas homossexuais não pode levar, de modo nenhum, à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões homossexuais. O bem comum exige que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial como base da família, célula primária da sociedade. Reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao matrimónio, significaria, não só aprovar um comportamento errado, com a consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade atual, mas também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do património comum da humanidade. A Igreja não pode abdicar de defender tais valores, para o bem dos homens e de toda a sociedade” (Congregação para a Doutrina da Fé - Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal
das uniões entre pessoas homossexuais).

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL AMORIS LAETITIA (2015):

 

Fiel ao ensinamento da Igreja, o Papa Francisco escreve na sua exortação apostólica Amoris Laetitia: “A Igreja conforma o seu comportamento ao do Senhor Jesus que, num amor sem fronteiras, Se ofereceu por todas as pessoas sem exceção. Com os Padres sinodais, examinei a situação das famílias que vivem a experiência de ter no seu seio pessoas com tendência homossexual, experiência não fácil nem para os pais nem para os filhos. Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar ‘qualquer sinal de discriminação injusta’ e particularmente toda a forma de agressão e violência. Às famílias, por sua vez, deve-se assegurar um respeitoso acompanhamento, para que quantos manifestam a tendência homossexual possam dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida (n. 250). No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projetos de equiparação ao matrimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família. É ‘inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o ‘matrimônio’ entre pessoas do mesmo sexo’ (n. 251)”.

 

O PAPA É O PRIMEIRO GUARDIÃO DA DOUTRINA DA IGREJA:

 

Recordo, portanto, que o Papa Francisco, nesta entrevista, não podia pretender dar um conteúdo magisterial à opinião que ele assim emitiu. Devemos, portanto, relativizar seu alcance e não nos escandalizar com o fato de que a mídia dela tenha se apoderado, sob o risco de criar confusão e divisão dentro e fora do povo cristão.

 

Portanto, é no mínimo um mal-entendido, quando a mídia acredita nisso para discernir uma expressão da autoridade suprema da Igreja. É útil lembrar, ao contrário do que ouvi de um jornalista do France Info, que não é o Papa quem faz a doutrina da Igreja, ele é apenas o primeiro a ter a missão de zelar pela fé católica recebida dos apóstolos. E se porventura for levado a proclamar ex cathedra um novo ensino a ser oferecido à fé dos fiéis, isso só pode ser em condições muito precisas e em coerência com a Palavra de Deus escrita e transmitida com fidelidade pelo Magistério bimilenar da Igreja.

 

Como o Papa Bento XVI o expressou de forma tão brilhante na homilia que proferiu ao tomar posse de sua cátedra como bispo de Roma, em São João de Latrão, em 9 de maio de 2005: “A autoridade para ensinar, na Igreja, inclui um compromisso ao serviço da obediência à fé. O Papa não é um soberano absoluto, cujo pensamento e vontade fazem lei. Pelo contrário: o ministério do Papa é a garantia da obediência a Cristo e à sua Palavra. Não deve proclamar as suas próprias ideias, mas submeter-se constantemente, tal como a Igreja, à obediência à Palavra de Deus, face a todas as tentativas de adaptação e empobrecimento, bem como face a qualquer oportunismo ( …) Portanto, o seu poder não se encontra “acima”, mas está a serviço da Palavra de Deus, e é sobre ele que está a responsabilidade de fazer com que esta Palavra continue presente na sua grandeza e ressoe em sua pureza, para que não seja destruída pelas incessantes mudanças das modas ”.

 

CONCLUSÃO

 

Por isso, não nos deixemos intimidar pela insistência e pelo frenesi com que os meios de comunicação veicularam este dito isolado do Papa Francisco, cujo contexto foi tratado com tanta leviandade. Gostaríamos que difundissem com a mesma insistência outras palavras do mesmo Romano Pontífice que se chocam de frente com a mentalidade do mundo, por exemplo, quando ele condena intransigentemente o drama do aborto e cujas ocorrências são tão repetitivas em seu ensinamento.

 

Podemos, portanto, ver, em conclusão, que no tratamento dessas informações, os meios de comunicação mostram, na melhor das hipóteses, um desconhecimento dos graus de autoridade da palavra papal, na pior, uma aquiescência servil às ideologias da moda, sem dúvida sob a pressão de lobbies extremamente organizados e agressivos, que pretendem impor à Igreja uma mudança constante da sua doutrina.

A cobertura hipermediática de uma pequena frase, fazendo uma caixa de ressonância, não pode de forma alguma dar peso de autoridade à palavra do Papa.